quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Impressionante Exposição

Ela só lembra que estava em um museu, na Holanda, encantada com as pinceladas impressionistas das obras de Vincent Van Gogh. Eram realmente impressionantes, com perdão do trocadilho. Queria ver mais de perto os golpes do pincel na tela e, ao se aproximar mais um pouco do quadro Cafe Terrace at Night, tudo, de repente, ficou escuro e inaudível.

Quando se recuperou já não estava mais no interior do museu. Também não tinha a menor idéia de onde estava. Era uma rua de calçamento irregular, feito de paralelepípedos, onde ela via passar algumas pessoas falando numa língua diferente da que estava acostumada nos Países Baixos, porém, não desconhecida para ela, o francês.

Pôs-se a pensar o porquê de em Otterlo, típica cidade holandesa, tantas pessoas estarem falando outra língua que não o neerlandês. Outra coisa a intrigava. Estaria havendo algum evento de moda ou festa à fantasia na cidade? Somente ela, em meio a um número considerável de pessoas, vestia jeans e camiseta. Por que as senhoras que passavam por ela trajavam vestidos bufantes e os homens traziam chapéus cobrindo as cabeças e se apoiavam em bengalas? Definitivamente, nada estava fazendo muito sentido naquele instante.

Vendo um bar aberto bem próximo do local onde se encontrava, ainda atônita, resolveu entrar e pedir para usar o banheiro, precisava jogar uma água no rosto. Dirigiu-se ao senhor que estava atrás do balcão e em alto e sonoro holandês disse:

Goedenavond! Waar is het toilet?[1]

Sem entender direito o que a moça desejava, o homem respondeu:

Pardon, Je ne comprends pas! Parlez-vous français?[2]

Não quis mais saber de banheiro, virou-se em direção à porta e correu, como se fugisse de uma assombração.

Au revoir![3] – ainda pôde ouvir o homem do bar gritar.

Não era possível! Como chegara até a França tão rápido se a sensação que tinha era de que, há apenas alguns minutos, estava em um museu holandês? Somente quando chegou à calçada é que se deu conta de que já era noite. Aliás, já era noite alta, passava das vinte e duas. Uma noite estrelada e linda.

Aflita, olhou novamente ao seu redor, forçando a cabeça para tentar lembrar como fora parar naquele lugar. Viu uma carruagem que se aproximava pela esquerda e alguns transeuntes empertigados. Vislumbrou então, não muito distante, uma tela e um cavalete e, por baixo destes, pôde divisar um par de pernas metidas em calças surradas e, pelo alto, o que parecia ser o cume de um chapéu de palha, meio esgarçado pelo tempo. Sem saber bem o porquê, como que hipnotizada, começou a caminhar naquela direção.

Lentamente, pisando macio e tomando cuidado para não tropeçar nem atrapalhar o artista, ela foi se aproximando, até parar a uns dois metros dele. Ignorando a presença da mulher, aquele homem ruivo, com a barba por fazer e cachimbo apagado no canto da boca só levantava a cabeça por alguns instantes, para logo depois, em movimentos curtos e rápidos, desferir golpes com seu pincel sobre a tela.

Ela não podia acreditar no que estava presenciando. Aquela cena era completamente irreal. Aquele homem, que ela muito admirava pela emoção de suas obras, há muito havia terminado com a própria vida. Dera dois tiros no peito em um campo de trigo que retratou em sua última pintura.

“Não, esse deve ser um sósia, e tudo isto deve fazer parte da exposição. Devo ter

perdido a consciência por alguns instantes e agora estou em uma ala externa do museu, onde

se realizam espetáculos que remontam a época da vida de Vincent”. – pensava ela.

– Boa noite, senhorita – disse o homem, em francês, sem mesmo desviar o olhar da pintura.

– Boa noite – respondeu a mulher, também utilizando a língua francesa.

Fez-se então um longo silêncio que agora foi quebrado por ela:

– Você pinta muito bem, qualquer um que visse este quadro diria que foi pintado pelo próprio Van Gogh.

Desviando o olhar, pela primeira vez desde o momento em que começara a pintar, fitou-a nos olhos e, espantando, perguntou:

– Não compreendo o que queres dizer. Como este quadro não se pareceria com uma pintura de Van Gogh se o próprio Vincent Van Gogh é quem está aqui a pintá-lo?

– Oh, o senhor é muito espirituoso, desculpe por minha falta de sensibilidade, é que ainda não entrei no clima desta representação. Aliás, é sensacional esta idéia de um teatro que imita os tempos de Van Gogh!

– Teatro? Representação? Mas do que é que você está falando? A propósito, de onde a senhorita conhece minhas pinturas? – indagou curioso.

– Como não reconheceria a obra do maior pintor impressionista de todos os tempos?

– Nossa! Ninguém nunca falou isso sobre meus quadros, a senhorita acha-os realmente bons?

– Bons, está brincando? Van Gogh foi o maior pintor de todos os tempos! – falou a mulher de maneira efusiva.

– Mas senhora, por que “foi” e não “é”, o melhor artista de todos os tempos? Afinal, ainda estou vivo!

Aos risos ela respondeu:

– Ah, o senhor é realmente muito espirituoso, mas não precisa mais fazer o papel de Vincent. Pode conversar naturalmente. Vamos, me diga, qual o seu verdadeiro nome?

– Vincent Van Gogh. – afirmou categórico.

– Ora, vamos lá, deixe disso. Sei que é um bom ator, mas agora quero conversar com você, não com o seu personagem!

– Notei quando a senhorita saiu do Café. Acho que não deveria ter tomado tanto absinto, está delirando!

– Absinto? Mesmo que quisesse não poderia tomar absinto, a bebida está proibida de ser comercializada desde 1915.

– Senhorita, acho melhor ir para sua casa, já não está mais falando coisa com coisa. Como a bebida poderia ser proibida em 1915 se ainda estamos em 1888?

– 1988, o senhor quis dizer...

– Senhora, o que digo é para seu próprio bem, volte para casa, a senhora parece estar precisando descansar. – falou o homem preocupado.

– Bom senhor, realmente agora a pouco, quando estava em uma das salas aqui do museu me senti um pouco estranha. Não consigo lembrar direito como cheguei até aqui. A última imagem de que me recordo é deste quadro, justamente, que o senhor está retratando, pendurado lá na parede. Depois tudo ficou escuro...

– Mas de que museu a senhorita está falando?

– Oras, e de qual mais seria? Do Kröller-Müller Museum[4], aqui de Otterlo!

Senhorita, por favor, pare com essa loucura! Estamos em Arles, na França, há vários quilômetros da Holanda! E ao que me consta, não há nem nuca houve nenhuma tela minha exposta naquela cidade, nem em nenhuma outra e também nunca ouvi falar antes deste museu! – respondeu o homem demonstrando certa impaciência.

– Não sei se há ou não alguma tela sua exposta em qualquer lugar que seja, estou falando de Van Gogh, Vincent Van Gogh, e não de um reles imitador dele!

– Ah, então é isso, você é somente mais uma dessas pessoas que cismaram de me atazanar, não é mesmo? Por que não me deixam trabalhar em paz? Por que minha presença nesta cidade incomoda tanto a todos? – gritou ele.

– O senhor não quer mesmo que eu acredite que estou diante do gênio Vincent, está? – indagou ela.

– Em nenhum momento disse que era um gênio! Mas, sim, eu sou Vincent Van Gogh!

– Se é mesmo Vincent, deixe-me ver sua orelha direita!

– O que é que minha orelha tem a ver com isso?

– Anda, deixa-me ver se falta um pedaço dela! – insistia a mulher.

– Minha orelha está aqui, inteirinha, por que eu haveria de tê-la aos pedaços? – disse mostrando a orelha.

– Ora, porque se você fosse realmente Van Gogh teria ela cortada!

– Louca! Insana! Saia já daqui e me deixe em paz! – o homem dizia aos berros.

– Ei, eu vou até a direção do museu para denunciá-lo! Como é que você pode ficar assim gritando com os visitantes? Por mais talentoso que possa ser fazendo o papel de Van Gogh, isso não lhe dá o direito de agir desta maneira, afinal você é apenas um sósia!

– Diabos mulher, eu já falei que não tenho nenhuma obra minha exposta em museu algum, nem na Holanda, nem na Itália, nem na Suíça e nem aqui na França! Mando todas as minhas pinturas para meu irmão Theo, e ele as guarda para mim!

– Vejo que conhece bem a história dele, mas eu também já li todos os livros sobre sua vida e sei muito bem que ele cortou a orelha esquerda em dezembro de 1888, há quase cem anos!

– Livros sobre minha vida, só pode ser uma brincadeira! Bem, se você diz que Vincent Van Gogh cortou a própria orelha em dezembro de 1888, pode ser que esteja com a razão. Mas, para saber disso, teremos de esperar até lá, afinal estamos em setembro. – Disse o homem com ar zombeteiro.

– Tudo certo meu amigo, mas isso foi em 1888, cem anos atrás!

– Cem anos atrás, foi isso mesmo o que a senhora disse? Por acaso a senhora quer mesmo me convencer de que estamos, de fato, no ano de 1988? É, acho que a bebedeira não te fez bem! Tudo bem, por que não faz o seguinte? – indagou o homem – pergunte as pessoas que estão sentadas ali na varanda do café em que ano estamos!

– Ah, mas é claro – redargüiu ela – como se todos eles não estivessem mancomunados com todo este teatro.

– Ora, estamos no meio da rua, não há nem nunca houve teatro por aqui! Vamos, dê uma volta, pergunte a quem quiser, depois, se eu ainda estiver por aqui, venha falar comigo novamente.

– Hahaha – ria a mulher – está bem senhor, irei me certificar de que realmente estamos em 1888, e depois volto aqui! Olha, foi um grande prazer conhecê-lo, apesar de toda esta confusão! Hahahaha... – continuava a rir enquanto se afastava do homem, que sacudia a cabeça negativamente, enquanto a via partir.

Algum tempo depois, o homem começou a arrumar suas coisas para ir embora, havia terminado a obra. Nem sinal daquela mulher que há pouco o havia deixado quase louco, com toda aquela conversa de museus, exposições e sobre a fama mundial de Vincent Van Gogh. “Quem dera o que aquela mulher disse fosse verdade”, pensou enquanto se afastava dali, com o cavalete e a tela embaixo do braço.

Enquanto isto, a mulher que acreditava estar nas dependências do museu começava a se dar conta de que, realmente, não havia museu algum por ali. Todos, sem exceção, por quem passara, estavam falando francês e vestindo trajes de época. Começou a ficar com medo. O que estaria acontecendo? Estaria ela sonhando? Beliscara-se. Doera. Não sonhava. Segurou pelo braço um jovem rapaz que passava a seu lado e perguntou:

– Me diga, por favor, que dia é hoje?

– 23 de setembro! – respondeu ele.

– E em que ano estamos?

– Ora essa, em 1888!

Tornou a desesperar-se e mais uma vez saiu em disparada. Refez o caminho de volta, na esperança de reencontrar o homem que pintava no meio da rua. Fora tudo em vão. Chegando lá, não havia mais sinal do pintor que, de fato, era Vincent Van Gogh. Porém, por mais absurdo que isso possa parecer, ela também não estava errada, vivia no ano de 1988. Estava sim, dentro daquele museu. Mais precisamente, dentro do quadro. Verdade, aqueles com um olhar mais atento, ao se aproximarem bem da pintura, poderão vê-la, parecendo perdida, à procura do seu criador.



[1] Em holandês: - Boa noite! Onde fica o banheiro?

[2] Em francês: - Desculpe, eu não compreendo! Você fala francês?

[3] Em francês: Até logo!

[4] Museu holandês que possui uma rica coleção de quadros de Vincent Van Gogh, em exposição permanente.

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