quarta-feira, 8 de julho de 2020

Papo de botequim

... porque tudo o que eu escrevo, penso e sinto já foi escrito, pensado e sentido por alguém, em algum lugar no tempo e no espaço. Nada em minha retórica é novo, nem nos meus pensamentos ou sentimentos. Os objetos, as pessoas, os momentos podem ser diferentes, mas a essência é a mesma. A humanidade que trago no DNA, a herança sócio-cultural, a convivência, as leituras, tudo isso me tornam um indivíduo, mas não me fazem muito diferente de qualquer outro dos que viveram neste mundo nos últimos cinco mil anos. Chamo de essência os padrões biopsicológicos, as reações químicas corporais, a condenação às leis elementares da física. Não é uma essência metafísica, teológica, é bastante concreta naquilo que nos acostumamos a chamar de realidade. Minhas ideias mais brilhantes, na verdade, não são minhas. São da espécie a que pertenço. Espécie que produziu gênios diversos ao longo do tempo, categoria na qual não posso ser incluído. Um gênio é alguém "fora da curva", excepcional, inventivo, inovador. Não sou nada disso. Sou um copista, que muita vezes, por uma distração ou uma irrefletida audácia, acaba por modificar sutilmente algo que já havia sido produzido antes. E isso não me faz infeliz, de forma alguma. Newton já deixou claro que só enxergava mais longe por estar apoiado nos ombros dos gigantes que vieram antes dele. Não vejo tão longe quanto gostaria, mas sei que sem os que vieram antes e, mesmo de muitos que são contemporâneos, meu horizonte estaria restrito, basicamente, à ponta do meu nariz. Raul nos propõe a constante revisão de nossos pensamentos, instigando que nos tornemos "metamorfoses ambulantes", e ele estava muito certo. Engessar nossas mentes é a pior forma de usar o cérebro que a natureza nos legou. Chega a ser desrespeitoso. Acreditar que existe uma "verdade" e que você a alcançou é a ilusão mais débil e inocente que alguém pode ter. A vida é fluxo. A vida é mudança. A vida é mutação. A vida é caos. E mesmo que eu concorde, em parte, com a "resposta das crianças" ela, além de bonita é, muitas vezes, medonha. Na verdade, sua beleza ou feiura provém de nossa forma de conceber a estética e à mania maniqueísta de querer ver tudo sob a dualidade "Bem" versus "Mal". A vida é apenas indiferente aos nossos sentimentos, emoções e sensações. Por sermos seres sencientes, por termos três estruturas cerebrais sobrepostas (em cuja base repousa nosso cérebro reptiliano primitivo e animal), buscamos dar sentindo ao mundo que nos rodeia na esperança de encontrar, também, algum sentido para nossas vidas. Mas, para além da evolução constante da espécie da qual fazemos parte, de maneira involuntária, não há sentido algum predefinido. Somos "livres" para criar o que bem entendermos. E nossa humanidade é tão soberba que, dentre tudo mais que inventamos, geramos (idealmente) um ser igual a nós, mas muito, muito, muito melhor. Um ser que gostaríamos de ser. Eterno. Grande. Forte. Perfeito. "Deus". Inconscientemente, sabendo de nossas falhas, de nossas limitações, almejamos ser algo que jamais seremos. Por jamais termos chance de chegar a sê-lo, imaginamos que fomos gestados na mente deste ser transcendental, para dominarmos um pequeno planeta, preso à gravidade de uma estrela de pequena grandeza, nos subúrbios de uma galáxia, em um dos possíveis universos existentes. Para dar uma ideia de nossa imponência, gosto de rememorar o astrofísico Carl Sagan que afirma existirem "mais estrelas no universo do que grãos de areia em todas as praias do planeta Terra". Por que, então somos tão arrogantes? Talvez essa seja a nossa marca distintiva enquanto espécie, e essa presunção nos tenha possibilitado dominar essa "nave-mãe" que nos carrega pelo cosmo. Eu não sou nenhuma novidade no mercado da humanidade. Meu prazer é colher as ideias que os outros deixaram cair pelo caminho e formar as minhas próprias. Ainda que saiba a inutilidade disto tudo, a longo prazo, pois até lá "estaremos todos mortos", segundo Keynes, é a minha chance de sentir a vida enquanto a tenho. Um dia voltarei a forma que tinha antes de nascer. Devolverei à natureza e ao universo a matéria que eles me legaram e estarei, ainda que sem consciência, unido a eles como sempre estive, apenas em outra forma, mas certamente, não em outra dimensão, não "além".

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